dialética negativa

Monday, March 19, 2018

Teoria literária I-2018-01-roteiro de aula

PARTE I
1- Murilo Mendes, no livro de memórias chamado A idade do serrote, de 1968,
faz um retrato do seu primeiro grande professor de literatura, o professor de
literatura francesa Almeida Queirós:
“Chegando a noite o professor munia-se de um óculo de alcance,
pondo-se a observar o céu e as primeiras estrelas que, não sei porque,
chamava de Mariazinhas, mesmo quando faltavam as Três Marias.
Nota 1:“Três Marias é o nome popular dado a um asterismo de três estrelas
que formam o cinturão da constelação de Orion, o caçador”.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Tr%C3%AAs_Marias_(astronomia)
Def. de Asterismo: substantivo masculino 1 Rubrica: astronomia.
dentro de uma constelação, conjunto de estrelas que apresenta
uma forma definida


Nota: Las tres estrellas son conocidas en España y América del Sur, como «Las Tres Marías».
En los países mediterráneos y países de Centro América y Mar Caribe como México,
Puerto Rico y parte de Colombia, son conocidas como «los Tres Reyes Magos» debido
a que es visible, saliendo por en el horizonte este en los anocheceres de la época
navideña y días previos a la Epifanía (6 de enero).

Isto é: chamar as três estrelas do cinturão de Orion de "três Marias" é uma
característica própria da América do Sul.

2- Volto a citar Murilo Mendes: "Sua verdadeira vocação desde criança seria a de astrônomo;
mas o destino dispusera diversamente. “Troquei o céu pela literatura francesa",
dizia ajustando à mão e à vista o aparelho”.
Nota 2: MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1995, p. 965.

  • Como um professor marca a entrada na literatura;
  • Como o desejo de alargar os horizontes vai do céu concreto para a imaginação literária;
  • Murilo fala da infância do seu professor de infância: mise en abyme.
Nota 3: Mise en abyme é um termo em francês que costuma ser traduzido
como "narrativa em abismo",
usado pela primeira vez por André Gide ao falar sobre as narrativas que
contêm outras narrativas dentro de si.
https://fr.wikipedia.org/wiki/Mise_en_abyme, https://pt.wikipedia.org/wiki/Mise_en_abyme

(Exemplo de mise en abyme visual: Capa do disco Ummagumma, de 1969,
 da Banda Pink Floyd.)
Questões:
1- Como a literatura reflete sobre a própria origem do interesse de seu autor por ela?
Essa reflexão se dá numa relação com o professor, isto é,
dentro de um contexto cultural de formação.
2- Como podemos pensar nosso contexto de formação hoje?
Qual o papel de um professor na iniciação à literatura?
3- Será que a valorização social do professor de literatura não está ligada
ao interesse que a própria literatura pode suscitar?
4- Vocês se tornarão professores de literatura. É a esse objetivo que a disciplina se destina. Não vale a pena pensar em qual papel vocês vão desempenhar? Quais suas possibilidades e limites, desejos e repulsas, gostos e desgostos, aspirações e anseios diante da literatura?

3- Volto a citar Murilo Mendes: “O professor tornara-se-me quase um ídolo.
Grande era sua paciência, bondade, mais a esperança de que eu me
tornasse alguém.” p. 966.
Na ocasião da morte de seu professor: “Triste porque não podia colher no céu
um ramo de Mariazinhas para oferecer ao mestre que lhe descobrira Racine,
La Fontaine, Fontenelle, abrindo-lhe o caminho futuro
para o conhecimento de Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud e outras constelações”, p. 967.
Mariazinhas - Murilo se refere a esse tipo de flor, como em Minas Gerais:
https://jornaldoporao.wordpress.com/2012/12/20/mariazinha-lirio-do-brejo-hedychium-coronarium/


Murilo se aproveita da confusão do professor entre as três Marias e
o cognome de todas as estrelas de "mariazinhas" para mostrar seu
desejo de presentear o professor com as flores chamadas mariazinhas. 
A relação entre as estrelas e a flores só se dá devido ao nome, é uma relação retórica, paronomástica. A origem dos dois nomes de elementos
naturais completamente distintos está numa referência bíblica cristã comum.
Cria-se aí uma correlação analógica entre narrativa bíblica, flores, estrelas e
relação entre mestre e discípulo, isto é, há aí o que Theodor Adorno chama de
constelação

"O conhecimento do objeto em sua constelação é o conhecimento do processo
que ele acumula em si. Enquanto constelação, o pensamento teórico circunscreve
o conceito que ele gostaria de abrir, esperando que ele salte mais ou menos
como os cadeados de cofres-fortes bem guardados: não apenas por meio
de uma única chave ou de um único número, mas de uma combinação numérica."
ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009. p. 142.

Para pensar o modo como se dá o conhecimento do objeto a partir de uma
dialética entre o conceito e o não conceituado, enfim, para pensar uma
teoria que busca o impensável, o "não-idêntico", Adorno formula
a ideia de constelação de conceitos em torno de um objeto.
Para caracterizá-la, ele não define o que é constelação: usa uma imagem
alegórica: a do cadeado.

Também não é possível definir o que é literatura, nem estipular para que ela serve.
Só é possível se aproximar da literatura a partir de uma constelação de elementos.
Aí, a teoria literária se aproxima e se assemelha ao modo de composição
da própria poesia: por relações de semelhança, ou de ligação em rede.






















4- Para que serve a literatura?
Jornal: informa sobre os fatos da realidade
Rede e TV: entretém
Filme e seriado: narrativas preferidas
Produzir e ler literatura: implica talvez nenhuma visibilidade de função imediata.
"Certos leitores veem no texto literário um passatempo de difícil enfrentamento,
além de associá-lo a uma necessidade de erudição altamente inibidora. A consequência dessa
postura frente ao literário
resulta em uma visão do objeto como algo distante, de difícil acesso e,
talvez por isso, pouco atraente"
Nota 7: BASTAZIN, Vera. "Do sussuro ao grito de alerta: qual o espaço da literatura?".
FILHO, Plínio Martins.
TENÓRIO, Waldecy.  João Alexandre Barbosa: o leitor insone.
São Paulo: EdUSP, 2007, p. 146.

Ou: “Afinal, a pergunta recorrente "Para que serve a literatura?” evidencia o
utilitarismo de nossa época.
Lembro-me de uma visita à Fundação Maeght, em Saint-Paul-de-Vence,
nos anos 1970, em companhia
de um colega da Universidade de Nice e de um militante político da Argélia,
amigo dele. Estávamos numa
das salas que exibiam alguns dos mais belos quadros de Chagall, e o amigo
argelino expunha ao meu colega, numa fala exaltada,
os problemas políticos e sindicais de seu país.
De repente, ele parou de falar, olhou os quadros com espanto e perguntou:
"Para que serve isso?”.
Meu colega respondeu: "Para ser feliz”. Imitando essa resposta sintética e cabal,
podemos concluir: a literatura serve para rir, para chorar, para viajar,
para assombrar, para pensar, para compreender e,
sobretudo, para nos encantar com o fato de que a linguagem verbal seja capaz
de tudo isso e mais um pouco”.
Nota 8: MOISÉS, Leyla Perrone. Mutações da literatura no século XXI.
São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 8.
Acrescento: muitos professores, ainda nos anos 50 e 60, sentiam uma felicidade
inenarrável em viver dando aula de literatura. Era como se, hoje, houvesse uma
cadeira para dar aula sobre seriado de netflix. Contudo, a partir do desenvolvimento
do rádio, televisão e internet, hoje dar aula de literatura parece não estar tão distante
de dar aula de latim (algo que ainda temos em nossa universidade).

A literatura serve para chorar, diz Leila Perrone Moisés: nenhum meio de expressão
permitiu, no passado, que a expressão dos sentimentos, e dos sentimentos
ligados a aspirações frustradas, pensamentos vagos, ocorresse sem censura.

5- "26 de agosto de 1868 (Nove horas da manhã) [...]
Formidável impasse! O que ainda me é possível encontra-me enfastiado,
e tudo o que teria desejado me escapa e sempre me escapará.
O fim de todo elance é eternamente a fadiga e a decepção.
Desencorajamento, abatimento, prostração, apatia, spleen;
eis a série que é preciso recomeçar sem tréguas
quando se rola ainda o rochedo de Sisifo.
Não parece mais rápido e mais simples mergulhar primeiro
a cabeça no abismo? Morrer, dormir... talvez sonhar, disse
Hamleto. O suicídio não resolve nada se a alma é imortal."
AMIEL, Henri-Frédéric. Diário íntimo. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p. 234.

Fica claro, nesse trecho de Amiel, que a literatura consegue
pensar sobre a própria estrutura do desejo com muita precisão
antes do advento da psicanálise.
A literatura foi filosofia antes da filosofia, foi história antes da
história, sociologia antes da sociologia (verifique o papel de
Shakespeare ou Balzac para Marx, por exemplo); foi
psicanálise antes da psicanálise.

6- Logo, a literatura presta sim preciosos serviços:
1- O prazer da leitura aumenta a capacidade associativa,
imaginativa, que é indispensável
para o despertar do prazer no próprio estudo. Quem estuda sem
prazer estuda menos do que quem
estuda com prazer. Para desenvolver o prazer do
estudo, é preciso desenvolver o prazer
pelo conhecimento. A literatura, ou a poesia, nos seus
primórdios míticos, é a primeira forma de
conhecimento. Por isso ela é o cerne, o núcleo, a origem da
narração, da poetização e
do próprio conhecimento; por isso ela tem a propriedade
única de conter o prazer da narrativa.
2- Questões de concurso exigem do candidato a capacidade
de entender uma diversidade de sentidos
ou sentidos sutis. A literatura é, de todas as artes e conhecimentos,
a que melhor treina tal capacidade.
3-A literatura está na base da história da cultura e da civilização.
Se o homem é, primordialmente, um ser de linguagem,
as primeiras manifestações da linguagem
humana são literárias: seja a partir da musicalidade das palavras,
seja a partir da ficcionalidade.
Assim, a literatura é um dos fatores mais importantes da origem e
desenvolvimento da história, isto é,
da pré-história oral, passando pelos mais decisivos aprimoramentos
da história escrita até nossos tempos midiáticos.


Há uma grande oposição entre dois tipos de atividades em nosso mundo capitalista: 
DIVERSÃO X TRABALHO
ENTRETENIMENTO X ESTUDO

A lógica neoliberal não permite que passemos a vida nos divertindo.
Sua racionalidade nos pressiona, de mil modos, a obter uma
boa qualificação, ganhar e aumentar currículo, preparar-se para
cargos ou concursos de empregos bem remunerados e estáveis.
A princípio, a literatura parece não estar nem de um lado nem de outro.
Ela parece pairar num vazio duplamente inútil. 
Porém, é justamente porque não está nem de um lado nem de outro,
que ela é a melhor MEDIADORA entre um e outro. Ela é a origem tanto
do conhecimento quanto do entretenimento. 
Diversão - literatura - trabalho

Questões:
1- Como encaramos, ou queremos encarar, o lugar do entretenimento e do trabalho
em nossas vidas? Como achamos que o aluno de ensino fundamental e
médio poderia ou deveria entrar em contato com a literatura?
Quanto estamos dispostos a nos divertir com a literatura, e de que forma?
Quanto estamos dispostos a experimentar e estudar a literatura?

7- Origem da poesia (da literatura): “Igual a poesia de todas as épocas
primitivas, também a poesia dos primeiros tempos da Grécia se compõe
de fórmulas mágicas e sentenças de oráculo, orações, canções de
guerra e de trabalho. Todos estes gêneros têm um traço comum: o de
ser poesia ritual das massas. Aos cantores de fórmulas mágicas e de
oráculos, aos autores de lamentações mortuárias e canções guerreiras
lhes era alheia toda diferenciação individual; sua poesia era anônima e
destinada a toda a comunidade; expressava ideias e sentimentos que era comuns a todos”. 
Nota 9: HAUSER, Arnold. Historia social de la literatura y el arte. Barcelona: Labor, 1978, p. 78.

“Os esconjuros, os passos épicos das gestas, as falas mágicas e propriciatórias,
os versículos do Antigo Testamento, os cantos da liturgia bizantina e
medieval cujos textos se preservam até hoje, colam à estrutura frásica,
acentuando-a pela repetição e pelo paralelismo.
Tudo indica que, recitados ou cantados, os passos da poesia arcaica deviam ser
escandidos com energia ritual. O que resultava em dar ênfase às sílabas já fortes
e em alargar a diferença entre estas e as fracas.
Giambattista Vico, falando da linguagem dos rapsodos gregos, sugere que ‘por
necessidade natural’, os primeiros povos deviam falar ‘em ritmo heróico’ para melhor
reterem na memória as gestas da tradição”.
Nota 10: BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix,
Ed. da Universidade de São Paulo, 1977, p. 69.

Comparação: 
1- do modo de vida pré-histórico, da formação de uma cultura oral,
no início da humanidade,
2- com o modo de vida do presente: regime de atenção exposto sempre a telas,
máquinas de imagem. 

8- Christoph Türcke sobre a cultura do déficit de atenção: “Os espectadores de filme
ideais são os anacrônicos: aqueles capazes de ir narrando integralmente o filme
visto, capazes de refletir sobre ele, de dis­cuti-lo e até mesmo de resenhá-lo;
em suma, pessoas que o acompanham com perseverança e o cercam com
comportamentos que aprenderam nos trabalhos manuais e nos jogos de
habilidade infantis, na observação e na pintura de imagens, na leitura e
na escrita de textos, mas não apenas com o próprio filme, cujo princípio
foi claramente visto por Walter Benjamin: a contínua “mudança de lugares
e ângulos, que golpeiam intermitentemente o espectador”. “De fato”,
diz Benjamin, “a associação de ideias do espectador é interrompida
imediatamente com a mudança da imagem. Nisso se baseia o efeito de
choque provocado pelo cinema.”
O efeito de choque se abranda de verdade apenas quando as telas
passam a ser cenário de todos os dias, mas a intermitente “mudança
de lugares e ângulos” não para de modo nenhum. Ela se tornou onipresente.
Além disso, cada corte de imagem atua como um golpe óptico que irradia
para o especta­dor um “alto lá”, “preste atenção”, “olhe para cá”, e lhe aplica
uma pequena nova injeção de atenção, uma descarga mínima de adrenalina –
e, por isso, decompõe a atenção, ao estimulá-la o tempo todo. O choque da
imagem atrai magneticamente o olho pela troca abrupta de luzes; ele
promete inin­terruptas imagens novas, ainda não vistas; ele se exercita
na onipresença do mercado; seu “olhe para cá” propagandeia a próxima
cena como um vendedor ambulante anuncia sua mercadoria. E já que a tela
pertence tanto ao computador como à televisão, ela não só preenche o tempo livre,
mas atra­vessa a vida toda, também durante o tempo de trabalho; o choque imagético
e o trabalho coincidem. Os dados, que de início eu acesso, apoderam-se de mim
retroativamente, de modo que me obrigam ou a trabalhá-los ou a correr
o risco de ser demitido.
Por tudo isso, o choque da imagem se tornou o foco de um regime de atenção
global, que embota a percepção justamente por uma contínua exci­tação, um
contínuo despertar. Os criadores de programas televisivos não contam mais
com um espectador mediano que acompanha longos progra­mas do início ao fim.
Eles calculam de antemão que ele mudará de canal à menor queda de tensão
percebida, e ficam felizes quando conseguem retê-lo ao menos nos
destaques do programa, que são anunciados com chamadas espetaculares.
Esse espectador representa o regime de atenção do choque imagético,
e dita o modelo até para o leitor de hoje, mesmo o leitor intelec­tual.
Cada produto impresso, se quiser ser observado, precisa se comportar
de modo semelhante a uma imagem fílmica diante do olho. Nas últimas
duas décadas, todos os grandes jornais estão cada vez mais parecidos
com as revistas ilustradas. Sem fotos grandes eles não podem mais concorrer.
Toda a diagramação supõe que ninguém tem mais concentração e resistência
suficientes para ler um texto da primeira à última página, linha por linha.”
Nota: TÜRCKE, Christoph. "Cultura do déficit de atenção".
Tradução: Eduardo Guerreiro B. Losso. Revista Serrote, n. 19.
São Paulo: Revista Serrote. IMS - Instituto Moreira Salles, 2015.
https://www.revistaserrote.com.br/2015/06/cultura-do-deficit-de-atencao/

Questões:
1- Quais foram as mudanças de hábito, de audição, leitura e
fruição da poesia que ocorreram ao longo da história? Qual a resultante
dessas mudanças hoje?
2- Como a percepção humana se modifica a partir de diferentes
"regimes de atenção" empregados em torno dos meios de
comunicação (oralidade, leitura e transmissões audiovisuais)?


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